Calixto esgueirou-se para fora do bar, renunciando ao charro que lhe era oferecido por um puto imberbe e olhar matreiro.
- Fuma, Velho! – disse-lhe o puto. – Vais ver que depois te sentes outro.
Numa outra altura, Calixto aceitaria o charro escurecido pelo óleo do haxixe sem hesitar. O peso das memórias que teimavam em não desaparecer e lhe obscureciam o sonho metamorfoseando-o em pesadelos disformes, esvanecia-se como que por encanto à primeira inalação do fumo azul. Mas não agora.
Calixto arrepiou caminho naquele seu andar desengonçado e curvo, em direcção à praia da sua juventude. Sem hesitar, entrou pelo paul adentro, enterrando os pés no lodo e sentindo nos tornozelos nus o roçar dos caranguejos que o habitavam. Atravessado o brejo, Calixto olhou a enorme duna à sua frente, o derradeiro obstáculo ao seu anseio. Sentia-se fraco e interrogou-se quantas vezes mais conseguiria transpor aquela onda gigantesca de areia. Encolheu os ombros e, em posição simiesca, iniciou a subida. O rosto avermelhado de Calixto era uma máscara de esforço que contrastava com o branco dos olhos, os lábios secos na boca entreaberta, os cantos cobertos de escuma. Um pé, outro pé, empurrando o esquelético corpo. Uma mão, outra mão, içando-o, numa escalada inabalável até ao cume.
Atingido o topo, Calixto, empapado de suor, de joelhos, abre os braços num grito mudo e desfalece, rolando pelo declive da onda até ao sopé onde fica imóvel. Calixto ergue a cabeça areada, de onde sobressaem um par de olhos luminosos e febris, em direcção à estrada intermitente de tijolos amarela que corta o oceano e arrasta o corpo até lá, deixando que as ondas descontínuas o lavem e refresquem. Por fim, senta-se. “O Lápis”, pensa. Com o indicador enterrado na areia molhada, Calixto escreve:
eis-me,
uma vez mais,
perdido
nos anais
desta praia
escondida.
longe
dos olhares
perturbantes,
das palavras
insinuantes,
do dedo
acusador.
enfim,
do estupor…
e, por fim,
longe
da mentira.
Calixto recosta-se na duna, olhos semicerrados num rosto sereno. A estrada de tijolos amarelos não existe mais. Agora é a flamejante Durindana que se estende na sua direcção, deitada sobre o mar, a sua ponta atravessando o peito magro e nu de Calixto. Mas não o mata! Apenas transmite brandura, a secreta paz de espírito que lhe possibilitará viver por mais um dia, uma noite que seja.
De um buraco ali perto, uma cobra de pele luzidia desliza suavemente até Calixto elevando-se a seu lado num “s” perfeito, em harmonia com o efémero torpor do fim do dia. O vaivém das ondas leva consigo as palavras escritas na areia fina, agasalhando-as e alojando-as no âmago do seu ser…
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