Trabalho de Rigo23, artista português cujos trabalhos estão em exposição no MAC (Museu de Arte Contemporânea) em Niterói - Brasil
Também por vezes sinto no fundo da alma
Uma ânsia secreta de como tu correr
Com a bagagem somente de um dia
Sem este eterno guardar por guardar
A Dor tinha-o abandonado e Calixto comemorava. Finalmente estava livre da peçonha que o havia amedrontado uma grande parte da sua vida insignificante. Calixto elevou uma vez mais o copo transbordante do odorífero bagaço e, de olhos fechados, engoliu-o em um único trago. Com o copo na mão, imóvel, Calixto sentiu o líquido a escorrer pelo esófago, queimando-lhe as entranhas, as vísceras reagindo e reenviando o seu protesto na forma de um nauseabundo arroto. O gajo do balcão recuou, aturdido e enojado, sob o olhar sanguinolento de Calixto.
- Outro – disse, apontando com o dedo o copo vazio.
- Assim não duras muito, Velho – replicou o gajo ao mesmo tempo que lho enchia, fazendo-o transbordar.
Calixto nada disse. Agarrou no copo e virou-lhe as costas. Enquanto bebericava, o seu olhar pousou num casal sentado à sua frente. O tipo com cara de lontra falava e a gaja à sua frente olhava-o fascinada. As narinas palpitantes, a boca entreaberta, a respiração ofegante indiciavam uma página em branco que a gaja procurava preencher, mas que o tipo com cara de lontra parecia não ver ou não querer compreender. “Mais um roto”, pensou. Em tempos passados, Calixto fora bem-falante. Também ele impressionara o lado feminino com prosas poéticas sussurradas ao ouvido e experimentara o prazer da conquista do corpo, a entrega da alma através do uso da Palavra.
O cara de lontra continuava a falar, debitando palavras para um ponto fixo numa linha de terra imaginada por si, num monólogo monocórdico interminável, indiferente à súplica crescente no olhar da gaja. Calixto observou-a. Algo nela o incomodava, sem descortinar a razão para tal. Entre dois tragos, lembrou-se! Num passado distante, quando o ideal era o pão que alimentava a alma, a sua sede de conhecimento e admiração pela obra de Ticiano tinha-o arrastado ao Museu do Hermitage
Calixto estacara, abalado pela força inexplicável que o assaltava sempre que se encontrava perante o Belo e não raras vezes lhe arrancava uma lágrima. Essa mesma lágrima que agora corria pelo rosto de Calixto e o impelira, cambaleante, por entre as mesas ocupadas por gajos e gajas com o nariz enterrado nos portáteis, rindo-se como parvos para os ecrãs.
- Eu não aceito! – berrou. – Eu não aceito! Eu não aceito!
Neste pequeno país que temos,
Com pouco dinheiro e muitos vícios,
Fazemos de conta que não vemos,
As frias margens dos precipícios.
Dos políticos desta Nação,
Não vale a pena sequer falar,
Não fazem parte da solução,
Nesta barcaça a afundar.
Temos um Governo socialista,
Que s’ esqueceu que é de esquerda,
“O capitalismo é mais realista,
Para um país que está na “mêrda”.
Mordomias e privilégios,
Para afilhados e amigos,
São como decretos régios,
Estado iníquo e corrompido.
Grupos, bancos e afins,
Contratam “yuppies” para sugar,
O nosso sangue pr’ós vampiros,
Que se alambazam sem suar.
Quanto mais espremem, mais recebem,
Ao trabalho tiram o social,
Abusam, maltratam e despedem,
Deslocalizam, p’ra pagar mal.
Onde está a nossa Justiça?
Para onde foram os sindicatos?
Uma, é tão lenta que ficou riça,
Outros uivam à lua e comem patos.
Quem nos defende desta corja,
Que vai acabar com todos nós?
Teremos que voltar a por na forja,
As espadas dos nossos avós?
Até 2013, vamos estar em fim de festa,
Apaguem as luzes e varram o chão,
Apanhem os preservativos e o que resta,
Uns serão reciclados e outros, não.
Ou peguem nos tachos e caçarolas,
E sigam o exemplo argentino,
Gente que fez frente aos cartolas,
Neste mundo insano e sem destino.
(Poeta popular anónimo)
Esta série de quadras foram-me enviadas pelo meu amigo Berlim, que finalmente dá um ar da sua graça...
Bem hajas, pá!
A gaja indecorosa aproximou-se da mesa com o pretexto de cumprimentar Calixto, quando na realidade o seu olhar se fixava nos dois que o acompanhavam. Calixto a conhecia muito bem. Tão bem quanto as cascáveis dos desertos, e sabia que o seu veneno conseguia ser ainda mais mortífero.
Calixto ignorou-a, mas ela é que não desarmava. O tratava por “senhor isto” e “senhor aquilo”. Incomodava-o tal tratamento, ela bem o sabia. Olhou-a de frente e disse-lhe:
- Dor, tu estás velha! Velha, feia e gorda!
Quando vê Calixto, a gaja indecorosa mostra-lhe os dentes procurando disfarçar o mal-estar que sente. Calixto, dissimuladamente, confronta-a com frases escusadas: “Que fazes?”, “Para onde vais?”, “De onde vens?”.
Está a ser perverso, Calixto, nesse momento! A gaja é-lhe indiferente mas obriga-a a falar, contra a sua vontade. Obriga-a a mostrar-lhe os dentes e isso dá-lhe um gozo fodido. O que Calixto gostaria mesmo, era de lhe partir os dentes.
Calixto esgueirou-se para fora do bar, renunciando ao charro que lhe era oferecido por um puto imberbe e olhar matreiro.
- Fuma, Velho! – disse-lhe o puto. – Vais ver que depois te sentes outro.
Numa outra altura, Calixto aceitaria o charro escurecido pelo óleo do haxixe sem hesitar. O peso das memórias que teimavam em não desaparecer e lhe obscureciam o sonho metamorfoseando-o em pesadelos disformes, esvanecia-se como que por encanto à primeira inalação do fumo azul. Mas não agora.
Calixto arrepiou caminho naquele seu andar desengonçado e curvo, em direcção à praia da sua juventude. Sem hesitar, entrou pelo paul adentro, enterrando os pés no lodo e sentindo nos tornozelos nus o roçar dos caranguejos que o habitavam. Atravessado o brejo, Calixto olhou a enorme duna à sua frente, o derradeiro obstáculo ao seu anseio. Sentia-se fraco e interrogou-se quantas vezes mais conseguiria transpor aquela onda gigantesca de areia. Encolheu os ombros e, em posição simiesca, iniciou a subida. O rosto avermelhado de Calixto era uma máscara de esforço que contrastava com o branco dos olhos, os lábios secos na boca entreaberta, os cantos cobertos de escuma. Um pé, outro pé, empurrando o esquelético corpo. Uma mão, outra mão, içando-o, numa escalada inabalável até ao cume.
Atingido o topo, Calixto, empapado de suor, de joelhos, abre os braços num grito mudo e desfalece, rolando pelo declive da onda até ao sopé onde fica imóvel. Calixto ergue a cabeça areada, de onde sobressaem um par de olhos luminosos e febris, em direcção à estrada intermitente de tijolos amarela que corta o oceano e arrasta o corpo até lá, deixando que as ondas descontínuas o lavem e refresquem. Por fim, senta-se. “O Lápis”, pensa. Com o indicador enterrado na areia molhada, Calixto escreve:
eis-me,
uma vez mais,
perdido
nos anais
desta praia
escondida.
longe
dos olhares
perturbantes,
das palavras
insinuantes,
do dedo
acusador.
enfim,
do estupor…
e, por fim,
longe
da mentira.
Calixto recosta-se na duna, olhos semicerrados num rosto sereno. A estrada de tijolos amarelos não existe mais. Agora é a flamejante Durindana que se estende na sua direcção, deitada sobre o mar, a sua ponta atravessando o peito magro e nu de Calixto. Mas não o mata! Apenas transmite brandura, a secreta paz de espírito que lhe possibilitará viver por mais um dia, uma noite que seja.
De um buraco ali perto, uma cobra de pele luzidia desliza suavemente até Calixto elevando-se a seu lado num “s” perfeito, em harmonia com o efémero torpor do fim do dia. O vaivém das ondas leva consigo as palavras escritas na areia fina, agasalhando-as e alojando-as no âmago do seu ser…
Calixto imóvel, olhos fechados, sentado no seu e-mundo junto ao balcão do bar, despertou a impaciência do empregado.
- Acorda, Velho! – disse, tocando-lhe receoso no braço. – Aqui não é sítio para dormir.
Calixto arregalou os olhos sanguíneos fixando-os no gajo do balcão, que se afastou resmungando. Calixto não dormia. Recuperava das inúmeras horas que vagabundeara sem objectivo, através de uma técnica conhecida por dhyana que aprendera nas montanhas do Tibete onde estivera quando jovem, que consistia em silenciar o ruído incessante da mente e, ao mesmo tempo, mantê-la acordada.
Um fulano alto, moreno e bem vestido, acabado de entrar, passou por Calixto, ignorando-o. O tipo atraíra a atenção de uma loira vistosa que se encontrava numa mesa, com as pernas cruzadas bem torneadas depiladas lustrosas, motivo dos olhares lúbricos masculinos femininos que a rodeavam, e que ela aceitava com enfado. Indiferente, o tipo sentou-se e pediu um café. O Velho levantou-se e, com um ar malandro, segredou-lhe:
- Tu és vaidoso!
Fot by Rep Xis
Afinal, Calixto não morreu! Depois de se lançar no precipício, ser recolhido das águas frias do Atlântico, das inúmeras tentativas de reanimação e até determinarem a hora do óbito, Calixto acordou com uma grande ressaca, admirando-se por se encontrar nu. Vestiu as roupas miseráveis e saiu pelos próprios pés do Hospital dirigindo-se ao bar onde agora se encontra, incomodado por uma dor no cu.
Queriam-lhe fazer o funeral, a ele, Calixto! Vestir-lhe um fato de pinho e despejá-lo num buraco como se fosse lixo! Calixto ri a bom rir, o rosto num esgar, os olhos sanguíneos, a boca desdentada e aberta de hálito imundo. Tinha enganado a Morte uma vez mais, essa puta que teima em o seguir para todo o lado.
Calixto na penumbra, acossado pelos fantasmas do passado, bebe mais um copo ao balcão do bar. Indiferente a quem entra, rezingão para quem sai, Calixto não parece apoquentado pelo turbilhão do pecado. Fede a álcool, tresanda a bafio… Mais um dia, uma noite na semivida de Calixto, sem tema nem assunto, sentado no seu mundo perante o olhar enojado do empregado.
coisa nº 10
Frenético!
Frenético!
Eu sou frenético!
O revirar dos olhos,
A espuma branca que goteja pelos cantos da boca
Os lábios secos, sedentos de uma bebida
Assim o davam a entender...
Cuspidas aos molhos
Numa toada esganiçada e oca
As palavras ressoam carecidas de vida.
Nada a fazer, nada a fazer...
Frenético!
Frenético!
Eu sou eléctrico!
coisa nº 8
um caminho de pedras rugosas
arestas afiadas cortantes à porfia
desaparece na perspectiva.
pés e pernas engelhadas, outrora airosas
abertas para o amor
descansam em um lugar sem nome
fechadas, mitigando a dor.
sem esperança
espoliados de qualquer lembrança
andarilham por caminhos inóspitos
apontados a dedo.
olhados com desprezo,
despertam instintos mórbidos.
Quando eu morrer voltarei para buscar
Os instantes que não vivi junto ao mar
Sophia de Mello Breyner Andresen
Desdenho as ruas sujas da cidade
Da Vila do Conde, sem idade
Antiga
Instruída
E dum indulto que ninguém lê
Escorre a tinta para o chão
Quem te viu, quem te vê
Conde da Vila, meu irmão
Alçapão
Um vulto íntimo do passado
Instiga à evolução
Do concreto, vigas de aço
Do betão, viva a rotação
E da régia filosofia
Pouco resta da sabedoria
De um passado, transmutado
Num presente calcinado
Passeio nas ruas limpas da cidade
Da Vila do Conde, aos meus olhos
Na puberdade
Nas folhas soltas de um livro antigo
Um segredo bem escondido
Oculta um nome, tão diferente
Flutua no ar, defronte toda a gente
Indecente
Do murmúrio nasce a palavra
Evoca o nome do poeta
Que morreu, a troco de nada
E viveu como um asceta
Com a parca nostalgia
Escorre o rio negro para o mar
Numa imensa antologia
Num líquido deixa andar
Chantal?
Sou o Chacal
A máquina letal
Que não te quer mal...
Chantal,
Mentirosa sem igual
Quem és tu, afinal?
A tal
Da ladainha verbal?
A do sinal trivial
Algum sexo oral
E sentimentos de metal?
Chantal
De pedra e cal
Débil mental
Numa cadeira formal
A resfolegar pelo bucal
Armada em puta fatal,
Psicóloga banal.
escurece
desperto
bêbado de mim...
tropeço
perdido no deserto sem fim
que é o meu quarto,
vegetação rasteira.
Há dias que eu me sinto, tão fatigado
E é nesses dias que eu pouso o meu olhar no passado
Relembro a primeira guitarra, o primeiro amor
E é nesses dias que eu penso, no rufar do meu tambor
Abro a minha mão
Estranho a sensação
Sento-me no chão
Vejo a minha colecção
Deito-me no colchão
Olho com muita atenção
Os que cá não estão
São parte da minha canção
Há dias que eu me sinto, preso a uma ilusão
Faço o dedilhar simples, com alguma imaginação
Mergulho discreto no som, profundo num coração
E é nesses dias que eu penso, é bom tocar um violão
Fecho a minha mão
Agarro a sensação
Levanto-me do chão
Deito fora a colecção
Sento-me no colchão
Ouço com muita atenção
Os que já lá vão
São parte da minha canção
Texto escrito faz uns anos, que eu julgava perdido e encontrei por acaso...
O monstro de quatro patas míope e uma goela
Prenhe mais uma vez
Arrasta-se lentamente pelo corredor
Espalhando veneno por onde passa.
Um corrimento fetal, que se escapa das entranhas
Desliza pelas coxas peludas carnudas,
Escorre para um mar de morte
Despertando um demente devaneio.
A gargalhada ecoa jocosa, hedionda
Contaminando o ar com a sua respiração fétida
Tornando-o impuro irrespirável sufocante penetrante... podre.
Vi ao longe
O meu peito aberto
Fustigado pelo vento herege
No miradouro decrépito
Suspenso nos penedos
Da milenar capela da Guia.
Um raio desponta no horizonte
Fendendo a tempestade
Alternando a luz do dia...
Erguem-se as ondas escuras
Irrompem num caos de pura anarquia
O cheiro a alga
A alma da maresia.
Flagelado pelos coriscos
O manto branco de espuma
Acolhe os passos do espectro
No velho forte abandonado.
Adoro os teus cabelos,
Ondulados
Sobre os ombros, nus
Aquele caracol,
Teimoso
Que se confunde com a luz
Dos teus olhos castanhos,
Tão sérios
Por vezes, estranhos.
Adoro o teu cabelo,
Brilhante,
No teu vestido laranja.
Na pele,
Tisnada
Pelo cálido sol distante
Que me encanta,
Desperta
E desmancha.
Adoro os teus cabelos,
Molhados,
Solto sobre os lábios
Da tua boca,
Perfeita.
Que a minha estreita
Num desejo,
Intenso
Beijo.
má
mar
marte
amar-te
com arte
através do visor
da TV
do monitor
LCD
digital
LSD
virtual...
com arte
má
Calixto morreu,
Morreu Calixto.
E depois?
É mais um que se finou,
Que optou
Por se lançar no vazio do espaço
E se fragmentou
Em mais do que um pedaço
Nas rochas pontiagudas e cortantes
Como o provam a perna e o braço
Encontrados em pontos equidistantes
O corpo de Calixto
Recolhido
Mal coube num saco
E foi um poema
Apartado do punho cerrado
Escrito à antiga pena
Que o carácter peculiar
Logrou identificar
Calixto morreu,
Morreu Calixto.
E depois?
Não passava de um poeta
Mal vestido
Um pateta
Desconhecido
Um aziago
Sub nutrido
Um chato
Empedernido
Vai e não voltes,
Jamais...
Pregue-se na cruz o último poema
E na lápide de pedra-pomes
A cinzel gravado por mão obscena
Os dizeres me morais:
"Aqui jaz Calixto
Um pobre de espírito
Viveu sem jeito
E morreu desfeito"
Calixto morreu
Calixto sou eu
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